quarta-feira, 21 de maio de 2008

CARAÚBAS, epílogo

"Taíba"

Estava sentado na beira da praia, no calor da fogueira, olhando pro mar da Taíba quando chega o Gigí com sua saudação gemida. Disse que não esperava me achar no mesmo dia. Tinha esperado o ônibus voltar, perguntado à trocadora onde eu tinha descido e seguiu meu rastro outra vez. Perguntei o que ele queria me seguindo e ele respondeu que pensava que eu ia ficar feliz em vê-lo. Trouxe sanduíche, kissuki e açúcar. Disse a ele que dele só queria a distância, mas ele ficou pedindo pra ficar até que me cansei e me concentrei no fogo. Tive a impressão de ver o diabo nas chamas e o Gigí estava quase que rodeado de anjinhos. Como ele pela primeira vez estava calado, comecei a falar:
-Você não gosta da vida. Não consegue ficar sozinho porque não se agüenta. Fica colocando a culpa nos outros, no pai, nos irmãos, em Caraúbas, mas é você quem tem problemas. Já até engoliu vidro e não morreu, e apesar de tudo parece que quer continuar vivo. O que te importa na vida, Gigí?
- Felicidade, respondeu.
- E o que te deixa feliz?
Nessa hora Gigí sorriu maliciosamente e lembrou das boates da Praia de Iracema, das transas e dos gringos. Tinha transado com homem aos 14 e com mulher aos 16, mas gostava mesmo é de homem. O imaginei de travesti e me pareceu que ficaria até um pouco melhor. Disse a ele que só ele quem poderia saber o que era melhor pra si, que não é errado fazer o que gosta e quem não concorda que se foda. Gigí disse que ia seguir meus conselhos.
Pediu pra ir dormir comigo, disse que ele ia dormir na praia. Fui catar lenha e quando voltei ele estava deitado de conchinha em volta da fogueira. Disse a ele que já ia embora e fui em sua direção. Me agachei e perguntei:
- Posso fazer uma coisa?
-Claro!
Dei-lhe um beijo na testa, virei as costas e fui embora. Deixei um bilhete na areia que dizia assim: “Gigí, viva a vida, vá dar o cú e seja feliz”.
Nunca mais o ví. Dei minha viagem por completa e fui pra casa.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

CARAÚBAS, parte 5

"Cannabis"

Acordo e começo a arrumar a mochila. É hora de seguir viagem. Gigí não quer que eu vá. Diz “por favor, pedido de amigo” e eu só achava tudo isso muito estranho. Peguei a bagagem e fomos para Caraúbas.
Agora todos pareciam ter algo contra o Gigí. O indesejável, o viado vagabundo. Fomos para a sombra da árvore do lado da venda onde sempre tinha alguém. Chegava gente e saía gente. Um tocou um brega no violão, perguntou se eu tinha um alicate de bico fino pra vender, pediu que eu trouxesse de Fortaleza da próxima vez “se o senhor puder”. Outro era um pescador cabeludo e calvo que contava histórias sobre vingança e morte. Eu estava fazendo um desenho no caderno do filho do dono da venda quando chegou o Diboy com um litro de cachaça. Gigí e eu nos juntamos a ele.
Diboy era baixo, entroncado e usava uma touca com as cores da Jamaica. Depois chegou outro chamado Zé Galo, alto e gesticuloso. Os dois começaram a falar em código sobre maconha. Zé Galo era “o homem dos camarões” e em alguma parte da metáfora eu ri e eles entenderam. Quando eles foram dar uma volta, eu fui com eles.
Entramos numa trilha que saía do campo de futebol. Fumamos e conversamos sobre paz, violência e gente que fica se metendo na vida dos outros.
Voltamos à cachaça até que ficou só eu, Diboy, Zé Galo e o Gigí. Diboy disse:
- Mas tu não presta, Gigí. Tu é um cabueta.
- Eu?
- Gosta de se vingar, de causar intriga. Teve até aquela estória lá do gringo...
- Gosta dum gringo, em Gigí? Insinuou Zé Galo.
- Eu? Eu não...
E saiu para pegar comida. Queria falar sobre o Gigí, que já tinha sido expulso da cidade, apanhado dos irmãos, jurado de morte e tentado suicídio, mas não disse nada. As pessoas da cidade preferiam ignorá-lo, e assim o fiz.
Quando ele volta, Diboy pergunta ao Zé Galo:
- Se tu tivesse só de cueca e um viado levasse tuas roupas pra tu ter que sair pelado pela cidade, só pra ele dizer pra todo mundo que tinha te comido, tu fazia o quê?
Zé Galo respondeu com gosto:
- Eu matava. Ofensa assim comigo é na bala. Matava mesmo!
Diboy sabiamente respondeu:
- Não pode ser assim. Se você matar alguém por qualquer besteira vai se arrepender. Não é uma solução simples. Não viemos à terra para julgar ninguém nem decidir quem vive ou quem morre. Você só deve matar quando não tiver escolha, quando for você ou ele.
Zé Galo refletiu e concordou. Acabamos o litro e Diboy se mandou de bicicleta. Logo depois foi o Zé Galo pegar o ônibus. Ficamos eu e o Gigí e, quando deu a hora, fui para a parada esperar o ônibus para a Taíba. Gigí foi me seguindo perguntando se eu não queria vender mais pulseiras, comer alguma coisa, ficar mais um dia. Respondi que não, que queria ir embora. Sentamos na parada e assim que chegou o ônibus disse tchau e subi. Ainda escutei ele pedindo dinheiro emprestado, que queria ir comigo. Ignorei.