segunda-feira, 21 de abril de 2008

CARAÚBAS, parte 4

"Filho da Mãe"

Acordei com o sol já alto. Voltei ao antigo acampamento procurar os ferrinhos da barraca que não vieram. Tomei café da manhã numa nascente que tinha por perto depois sentei numa sombra de coqueiro e parei pra refletir. Gostava disso. A areia, a sombra, a paz. Depois de um banho de mar, como não achei os ferrinhos, voltei para a barraca. Quando estava atravessando a escavação do hotel, escutei o Gigí gritar por mim. Tinha vindo me procurar, tinha seguido meu rastro. Voltei com ele para Caraúbas.
Era domingo, a fazenda não funcionava, tinham poucas pessoas na rua. Fomos para o sítio do Gigí, onde almocei. Ele discutiu com a sobrinha, que foi para o quarto e ligou o som. Depois começou a discutir com o pai, o que fez a sobrinha aumentar o volume e eu sair à procura de um telefone.
Ligo pra casa, ninguém atende. Vou caminhando de volta pro sítio, mas o Gigí já está voltando. Fala mal do pai, diz que não é pai de verdade, que é só de criação, que a casa é da mãe e que ele é o único filho registrado. Paramos na sombra de uma churrascaria em construção. Ele sai e volta com meia garrafa de cachaça, outra de refrigerante e bebe.
Pergunta se eu estou chateado com ele. Digo que não. Pergunta se pode dormir na minha barraca porque não pode dormir em casa. Digo que por mim tanto faz e então ele fica insistindo na pergunta como se quisesse uma resposta mais entusiasmada. Diz que tem uma coisa pra contar. Vai contar depois da próxima dose. Depois da terceira dose com essa desculpa diz que não vai mais contar. Vai não sei aonde e volta, diz pra eu dormir que ali ninguém vai mexer comigo. Bebe mais uma dose, conta que é homossexual e começa a chorar chamando pela mãe.
Descemos e montei uma fogueira. Ele disse que ia pegar comida, mas eu disse que só precisava de água. Enquanto ele vai buscar preparo um miojo e quando fica pronto ele volta sem a água mas com arroz, feijão, frango e farofa. Olha pro miojo, me chama de arrogante e depois pede desculpas. Misturei tudo na panela e comemos. Entramos e deitamos na barraca a uma distância segura. Verifiquei a faca embaixo do travesseiro. Dormimos.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

CARAÚBAS, parte 3

"Solidão"

O próximo passo era me mudar para Caraúbas. Fomos eu e o Gigí de volta ao acampamento. Ele foi devolver uma vela que tinha achado na praia e escondido em um lugar seguro “para ninguém pegar” aos velejadores de hobie-cat que agora estavam na praia procurando. Arrumei minhas coisas, tirei uma última soneca e fomos pra Caraúbas.
Com o acampamento armado numa sombrinha antes da cerca, fui com o Gigí conhecer o morro do Davi. No caminho cruzamos com um terceiro irmão, que empunhava uma peixeira e passou calado. Colhemos lenha e voltamos para a barraca. Cavei um lugar na areia, ele montou a lenha e pediu meu isqueiro emprestado para acender o fogo. Acendeu e me devolveu, porém este não funcionava mais. Elogiou as meninas da cidade e me chamou para subir, mas preferi ficar sem Gigí e sem meninas. Ficou eu e o fogo.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

CARAÚBAS, parte 2

"Caraúbas"

Gosto de dormir, por isso armei a barraca de forma que o sol me permitisse dormir até umas nove horas, pelo menos. Sete da manhã batem e me chamam algumas vezes até que acabo tendo que responder. Era o Gigí, que tinha virado a noite e estava chegando direto do festival, mas apesar disso parecia disposto. Peguei meus trampos e fomos a Caraúbas.
Caraúbas ficava ao sul, atravessando uma quantidade considerável de dunas, inclusive no meio delas uma escavação do que seria um hotel de luxo com lagos artificiais propícios para a prática de kite-surf. Onde termina as dunas e começa o mato, passamos por uma cerca de arame farpado com a entrada em formato de U que dá para um terreno com duas casas, onde paramos para beber água. Passando por outra porteira, uma trilha, um canavial, um coqueiral e umas casas perdidas pelo caminho vai dar de cara com a rua principal de Caraúbas, que surge como mágica, com sua igreja, mercearias, pessoas nas varandas ou escoradas em seus parapeitos ou indo comprar o pão.
Seguimos para uma fazenda produtora de rapadura tomar caldo de cana, que jorrava sem parar. Bebemos e fomos em direção ao sítio do Gigí. No caminho fomos parando nas casas para eu vender algumas pulseiras ou brincos, mas na verdade quem apresentava os produtos era o Gigí, que já tinha tomado posse do meu canudo. Todo mundo muito simpático, sempre com algo para conversar ou um cafezinho para oferecer. Paramos numa venda onde o dono me ofereceu fios de telefone para fazer artesanato. Aceitei.
Chegamos no sítio do Gigí, onde dois de seus irmãos pescadores limpavam suas tarrafas no quintal. Fumavam trevo e falavam da vida com um tom de sabedoria, porém sempre sérios. Não sorriem para o Gigí.
Levamos maçã e banana.