sexta-feira, 11 de julho de 2008

A Facada da Noite

Ainda não posso entregar as minhas mãos ao açougueiro. Tenho que lavar os anéis. Mas ele não quer esperar. "Calma, seu açougueiro! As mãos fazem o que elas querem. Não interfira!" E então um tiro no espaço. Sim, eu ouvi muito bem! Caem faíscas de pó de estrela em minhas mãos, o que as fazem brilhar. "Meu Deus! Cortem isso fora!" E de repente elas se apagam, e tudo se apaga. É a noite. Ela chega tão de mansinho que o cachorro nem late. Chega com sede de sangue. O cachorro não é suficiente. Ela precisa deixar marcado o sangue derramado, para que futuras gerações não se esqueçam. Então a noite enfia a faca no coração do amor. O amor rí: "Não sabes que sou imortal?" E a noite responde: "Não, você pode morrer. A minha faca é feita de um material especial que tem o poder de extinguir o amor." E o amor: "Oh, você não pode estar falando de..." E a noite: "Sim, ela é feita de tempo." "Não posso morrer" pensa o amor, mas ele não vê esperança. Me entrega os anéis sujos de sangue e diz adeus. Posso sentir o gosto sádico de vitória na boca da noite. O açougueiro se aproxima e tudo acontece muito depressa. Ele decepa a cabeça da noite com seu cutelo ensangüentado e diz: "Deixe a faca enfiada pois a noite se esqueceu de um detalhe: O tempo também pode curar um coração dilacerado." E o amor pergunta: "Mas quem diabos é você?" "Não interessa", responde o açougueiro. "Agora passem-me os anéis!"

quarta-feira, 21 de maio de 2008

CARAÚBAS, epílogo

"Taíba"

Estava sentado na beira da praia, no calor da fogueira, olhando pro mar da Taíba quando chega o Gigí com sua saudação gemida. Disse que não esperava me achar no mesmo dia. Tinha esperado o ônibus voltar, perguntado à trocadora onde eu tinha descido e seguiu meu rastro outra vez. Perguntei o que ele queria me seguindo e ele respondeu que pensava que eu ia ficar feliz em vê-lo. Trouxe sanduíche, kissuki e açúcar. Disse a ele que dele só queria a distância, mas ele ficou pedindo pra ficar até que me cansei e me concentrei no fogo. Tive a impressão de ver o diabo nas chamas e o Gigí estava quase que rodeado de anjinhos. Como ele pela primeira vez estava calado, comecei a falar:
-Você não gosta da vida. Não consegue ficar sozinho porque não se agüenta. Fica colocando a culpa nos outros, no pai, nos irmãos, em Caraúbas, mas é você quem tem problemas. Já até engoliu vidro e não morreu, e apesar de tudo parece que quer continuar vivo. O que te importa na vida, Gigí?
- Felicidade, respondeu.
- E o que te deixa feliz?
Nessa hora Gigí sorriu maliciosamente e lembrou das boates da Praia de Iracema, das transas e dos gringos. Tinha transado com homem aos 14 e com mulher aos 16, mas gostava mesmo é de homem. O imaginei de travesti e me pareceu que ficaria até um pouco melhor. Disse a ele que só ele quem poderia saber o que era melhor pra si, que não é errado fazer o que gosta e quem não concorda que se foda. Gigí disse que ia seguir meus conselhos.
Pediu pra ir dormir comigo, disse que ele ia dormir na praia. Fui catar lenha e quando voltei ele estava deitado de conchinha em volta da fogueira. Disse a ele que já ia embora e fui em sua direção. Me agachei e perguntei:
- Posso fazer uma coisa?
-Claro!
Dei-lhe um beijo na testa, virei as costas e fui embora. Deixei um bilhete na areia que dizia assim: “Gigí, viva a vida, vá dar o cú e seja feliz”.
Nunca mais o ví. Dei minha viagem por completa e fui pra casa.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

CARAÚBAS, parte 5

"Cannabis"

Acordo e começo a arrumar a mochila. É hora de seguir viagem. Gigí não quer que eu vá. Diz “por favor, pedido de amigo” e eu só achava tudo isso muito estranho. Peguei a bagagem e fomos para Caraúbas.
Agora todos pareciam ter algo contra o Gigí. O indesejável, o viado vagabundo. Fomos para a sombra da árvore do lado da venda onde sempre tinha alguém. Chegava gente e saía gente. Um tocou um brega no violão, perguntou se eu tinha um alicate de bico fino pra vender, pediu que eu trouxesse de Fortaleza da próxima vez “se o senhor puder”. Outro era um pescador cabeludo e calvo que contava histórias sobre vingança e morte. Eu estava fazendo um desenho no caderno do filho do dono da venda quando chegou o Diboy com um litro de cachaça. Gigí e eu nos juntamos a ele.
Diboy era baixo, entroncado e usava uma touca com as cores da Jamaica. Depois chegou outro chamado Zé Galo, alto e gesticuloso. Os dois começaram a falar em código sobre maconha. Zé Galo era “o homem dos camarões” e em alguma parte da metáfora eu ri e eles entenderam. Quando eles foram dar uma volta, eu fui com eles.
Entramos numa trilha que saía do campo de futebol. Fumamos e conversamos sobre paz, violência e gente que fica se metendo na vida dos outros.
Voltamos à cachaça até que ficou só eu, Diboy, Zé Galo e o Gigí. Diboy disse:
- Mas tu não presta, Gigí. Tu é um cabueta.
- Eu?
- Gosta de se vingar, de causar intriga. Teve até aquela estória lá do gringo...
- Gosta dum gringo, em Gigí? Insinuou Zé Galo.
- Eu? Eu não...
E saiu para pegar comida. Queria falar sobre o Gigí, que já tinha sido expulso da cidade, apanhado dos irmãos, jurado de morte e tentado suicídio, mas não disse nada. As pessoas da cidade preferiam ignorá-lo, e assim o fiz.
Quando ele volta, Diboy pergunta ao Zé Galo:
- Se tu tivesse só de cueca e um viado levasse tuas roupas pra tu ter que sair pelado pela cidade, só pra ele dizer pra todo mundo que tinha te comido, tu fazia o quê?
Zé Galo respondeu com gosto:
- Eu matava. Ofensa assim comigo é na bala. Matava mesmo!
Diboy sabiamente respondeu:
- Não pode ser assim. Se você matar alguém por qualquer besteira vai se arrepender. Não é uma solução simples. Não viemos à terra para julgar ninguém nem decidir quem vive ou quem morre. Você só deve matar quando não tiver escolha, quando for você ou ele.
Zé Galo refletiu e concordou. Acabamos o litro e Diboy se mandou de bicicleta. Logo depois foi o Zé Galo pegar o ônibus. Ficamos eu e o Gigí e, quando deu a hora, fui para a parada esperar o ônibus para a Taíba. Gigí foi me seguindo perguntando se eu não queria vender mais pulseiras, comer alguma coisa, ficar mais um dia. Respondi que não, que queria ir embora. Sentamos na parada e assim que chegou o ônibus disse tchau e subi. Ainda escutei ele pedindo dinheiro emprestado, que queria ir comigo. Ignorei.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

CARAÚBAS, parte 4

"Filho da Mãe"

Acordei com o sol já alto. Voltei ao antigo acampamento procurar os ferrinhos da barraca que não vieram. Tomei café da manhã numa nascente que tinha por perto depois sentei numa sombra de coqueiro e parei pra refletir. Gostava disso. A areia, a sombra, a paz. Depois de um banho de mar, como não achei os ferrinhos, voltei para a barraca. Quando estava atravessando a escavação do hotel, escutei o Gigí gritar por mim. Tinha vindo me procurar, tinha seguido meu rastro. Voltei com ele para Caraúbas.
Era domingo, a fazenda não funcionava, tinham poucas pessoas na rua. Fomos para o sítio do Gigí, onde almocei. Ele discutiu com a sobrinha, que foi para o quarto e ligou o som. Depois começou a discutir com o pai, o que fez a sobrinha aumentar o volume e eu sair à procura de um telefone.
Ligo pra casa, ninguém atende. Vou caminhando de volta pro sítio, mas o Gigí já está voltando. Fala mal do pai, diz que não é pai de verdade, que é só de criação, que a casa é da mãe e que ele é o único filho registrado. Paramos na sombra de uma churrascaria em construção. Ele sai e volta com meia garrafa de cachaça, outra de refrigerante e bebe.
Pergunta se eu estou chateado com ele. Digo que não. Pergunta se pode dormir na minha barraca porque não pode dormir em casa. Digo que por mim tanto faz e então ele fica insistindo na pergunta como se quisesse uma resposta mais entusiasmada. Diz que tem uma coisa pra contar. Vai contar depois da próxima dose. Depois da terceira dose com essa desculpa diz que não vai mais contar. Vai não sei aonde e volta, diz pra eu dormir que ali ninguém vai mexer comigo. Bebe mais uma dose, conta que é homossexual e começa a chorar chamando pela mãe.
Descemos e montei uma fogueira. Ele disse que ia pegar comida, mas eu disse que só precisava de água. Enquanto ele vai buscar preparo um miojo e quando fica pronto ele volta sem a água mas com arroz, feijão, frango e farofa. Olha pro miojo, me chama de arrogante e depois pede desculpas. Misturei tudo na panela e comemos. Entramos e deitamos na barraca a uma distância segura. Verifiquei a faca embaixo do travesseiro. Dormimos.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

CARAÚBAS, parte 3

"Solidão"

O próximo passo era me mudar para Caraúbas. Fomos eu e o Gigí de volta ao acampamento. Ele foi devolver uma vela que tinha achado na praia e escondido em um lugar seguro “para ninguém pegar” aos velejadores de hobie-cat que agora estavam na praia procurando. Arrumei minhas coisas, tirei uma última soneca e fomos pra Caraúbas.
Com o acampamento armado numa sombrinha antes da cerca, fui com o Gigí conhecer o morro do Davi. No caminho cruzamos com um terceiro irmão, que empunhava uma peixeira e passou calado. Colhemos lenha e voltamos para a barraca. Cavei um lugar na areia, ele montou a lenha e pediu meu isqueiro emprestado para acender o fogo. Acendeu e me devolveu, porém este não funcionava mais. Elogiou as meninas da cidade e me chamou para subir, mas preferi ficar sem Gigí e sem meninas. Ficou eu e o fogo.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

CARAÚBAS, parte 2

"Caraúbas"

Gosto de dormir, por isso armei a barraca de forma que o sol me permitisse dormir até umas nove horas, pelo menos. Sete da manhã batem e me chamam algumas vezes até que acabo tendo que responder. Era o Gigí, que tinha virado a noite e estava chegando direto do festival, mas apesar disso parecia disposto. Peguei meus trampos e fomos a Caraúbas.
Caraúbas ficava ao sul, atravessando uma quantidade considerável de dunas, inclusive no meio delas uma escavação do que seria um hotel de luxo com lagos artificiais propícios para a prática de kite-surf. Onde termina as dunas e começa o mato, passamos por uma cerca de arame farpado com a entrada em formato de U que dá para um terreno com duas casas, onde paramos para beber água. Passando por outra porteira, uma trilha, um canavial, um coqueiral e umas casas perdidas pelo caminho vai dar de cara com a rua principal de Caraúbas, que surge como mágica, com sua igreja, mercearias, pessoas nas varandas ou escoradas em seus parapeitos ou indo comprar o pão.
Seguimos para uma fazenda produtora de rapadura tomar caldo de cana, que jorrava sem parar. Bebemos e fomos em direção ao sítio do Gigí. No caminho fomos parando nas casas para eu vender algumas pulseiras ou brincos, mas na verdade quem apresentava os produtos era o Gigí, que já tinha tomado posse do meu canudo. Todo mundo muito simpático, sempre com algo para conversar ou um cafezinho para oferecer. Paramos numa venda onde o dono me ofereceu fios de telefone para fazer artesanato. Aceitei.
Chegamos no sítio do Gigí, onde dois de seus irmãos pescadores limpavam suas tarrafas no quintal. Fumavam trevo e falavam da vida com um tom de sabedoria, porém sempre sérios. Não sorriem para o Gigí.
Levamos maçã e banana.

sexta-feira, 14 de março de 2008

CARAÚBAS, parte 1

"Uma Ave de Rapina"

Foi numa dessas viagens que você faz sozinho, procurando se encontrar. Saí caminhando pelo litoral com destino a Taíba. Atravessei o Pecém e no fim de tarde armei o acampamento num buraco de areia entre duas dunas, em frente ao Morro da Raposa, que fica a uns 20 min a oeste da Colônia de Férias do Pecém.
A noite caiu e eu fiquei a conversar com o vento, descobrindo as dunas pelos arredores. Resolvi subir o Morro da Raposa e ao chegar ao topo dei de cara com uma ave de rapina que, assim como eu, tomou um susto e voou para longe. Passei um tempo olhando a paisagem de dunas escuras do ponto mais alto do morro, onde a ave estava, até que resolvi descer e fazer uma fogueira.
Após um tempo vi uma sombra se aproximar e aos poucos ir tomando forma. Era uma figura magra, desengonçada, aparência sofrida, pele morena queimada pelo sol, banguela de alguns dentes e um bucho de cachaça. Apresentou-se como Gigí, sentou-se perto da fogueira e começou a conversar. Estava a caminho da Taíba para o festival anual de escargot. Animado, gostava de dançar forró, ouvir Caetano e falar sobre seus amigos estrangeiros. Me chamou para o festival mas eu estava cansado da caminhada e ficou combinado que ele passaria no dia seguinte para me levar para tomar caldo de cana no vilarejo onde morava, um lugar chamado Caraúbas.